terça-feira, 29 de setembro de 2015

Criar - Antonio Agostinho Neto



Antonio Agostinho Neto nasceu em Icola e Bengo, Angola. Estudou medicina em Portugal. Foi um dos dirigentes do movimento de independência de seu país.




CRIAR



Criar criar

criar no espírito criar no músculo criar no nervo

criar no homem criar na massa

criar

criar com os olhos secos



Criar criar

sobre a profanação da floresta

sobre a fortaleza impudica do chicote

criar sobre o perfume dos troncos serrados

criar

criar com os olhos secos



Criar criar

gargalhadas sobre o escárnio da palmatória

coragem nas pontas das botas do roceiro

força no esfrangalhado das portas violentadas

firmeza no vermelho-sangue da insegurança

criar

criar com os olhos secos



Criar criar

estrelas sobre o camartelo guerreiro

paz sobre o choro das crianças

paz sobre o suor sobre a lágrima do contrato

paz sobre o ódio

criar

criar paz com os olhos secos.

Criar criar

criar liberdade nas estradas escravas

algemas de amor nos caminhos paganizados do amor



sons festivos sobre o balanceio dos corpos em forcas simuladas



criar

criar amor com os olhos secos.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

A avó - Olavo Bilac

A Avó


A avó, que tem oitenta anos,
Está tão fraca e velhinha! . . . 
Teve tantos desenganos! 
Ficou branquinha, branquinha, 
Com os desgostos humanos. 

Hoje, na sua cadeira, 
Repousa, pálida e fria, 
Depois de tanta canseira: 
E cochila todo o dia, 
E cochila a noite inteira. 

Às vezes, porém, o bando 
Dos netos invade a sala . . . 
Entram rindo e papagueando: 
Este briga, aquele fala, 
Aquele dança, pulando . . . 

A velha acorda sorrindo, 
E a alegria a transfigura; 
Seu rosto fica mais lindo, 
Vendo tanta travessura, 
E tanto barulho ouvindo. 

Chama os netos adorados, 
Beija-os, e, tremulamente, 
Passa os dedos engelhados, 
Lentamente, lentamente, 
Por seus cabelos, doirados. 

Fica mais moça, e palpita, 
E recupera a memória, 
Quando um dos netinhos grita: 
"Ó vovó! conte uma história! 
Conte uma história bonita!" 

Então, com frases pausadas, 
Conta historias de quimeras, 
Em que há palácios de fadas, 
E feiticeiras, e feras, 
E princesas encantadas . . . 

E os netinhos estremecem, 
Os contos acompanhando, 
E as travessuras esquecem, 
— Até que, a fronte inclinando
Sobre o seu colo, adormecem . . .

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Se me perguntares - Armando Emílio Guebuza

Armando Emílio Guebuza (Murrupula, Nampula, 20 de Janeiro de 1943) é um político e e foi o presidente moçambicano de 2 de Fevereiro de 2005 a 15 de Janeiro de2015. Seus poemas apareceram primeiro no Boletim da Frelimo, juntamente com outros poetas guerrilheiros.



SE ME PERGUNTARES


Se me perguntares

Quem sou eu

Cavada de bexiga de maldade

Com um sorriso sinistro

Nada te direi

Nada te direi

Mostrarte-ei as cicatrizes de séculos

Que sulcam as minhas costas negras

Olhar-te-ei com olhos de ódio

Vermelhos de sangue vertido durante séculos

Mostrar-te-ei minha palhota de capim

A cair sem reparação

Levar-te-ei às plantações

Onde sol a sol

Me encontro dobrado sobre o solo

Enquanto trabalho árduo

Mastiga meu tempo

Levar-te-ei aos campos cheios de gente

Onde gente respira miséria em toda a hora

Nada te direi

Mostrar-te-ei somente isto

E depois

Mostrar-te-ei os corpos do meu Povo

Tombados por metralhadoras traiçoeiras,

Palhotas queimadas por gente tua

Nada te direi

E saberá porque luto.



Moçambique, 1977

terça-feira, 8 de setembro de 2015

O limão fruto do mês - Abreu Paxe

Abreu Castelo Vieira dos Paxe, nasceu em 1969, no Colonato do Vale do Loge, Província do Uíge, filho de operário e de mãe doméstica. Venceu o concurso Um Poema para África em 2000.





o limão fruto do mês



no tópico a penumbra limita o céu

a deus a mesma paragem

passa em liberdade suave textura

a mulher tarde horizontal

de estrutura espessa o género substantiva camada

passa a boca espalhada pelo corpo

guarda todos os traços femininos empurram o limão

permanecem no caminho de frias letras

decifrada a edição é toda ampla pluma

os determinadores pernas no planeta as sedas

deixam de lado os factos contextuais

as luzes estendem-se até a nudez

a existência tão longa produção constrói estrelas

outro corpo

as trevas janelas inquilinos selando juros

sábado, 5 de setembro de 2015

Mãe Negra - Aguinaldo Fonseca


Aguinaldo Fonseca nasceu em Cabo Verde, em 1922. Sua poesia é muito difundida na web e em obras coletivas em diversos países.




MÃE NEGRA-



A mãe negra embala o filho.

Canta a remota canção

Que seus avós já cantavam

Em noites sem madrugada.

Canta, canta para o céu

Tão estrelado e festivo.

É para o céu que ela canta,

Que o céu

Às vezes também é negro.

No céu

Tão estrelado e festivo

Não há branco, não há preto,

Não há vermelho e amarelo.

—Todos são anjos e santos

Guardados por mãos divinas.

A mãe negra não tem casa

Nem carinhos de ninguém...

A mãe negra é triste, triste,

E tem um filho nos braços...

Mas olha o céu estrelado

E de repente sorri.

Parece-lhe que cada estrela

É uma mão acenando

Com simpatia e saudade...

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Ombro - Alberto de Lacerda

Alberto Correia de Lacerda (Ilha de Moçambique, 20 de Setembro de 1928 — Londres, 26 de Agosto de 2007) foi um poeta português. Nascido no Norte de Moçambique



OMBRO



E' uma sombra ligeira.



Deixa sossegar

a minha cabeça sobre o teu ombro,

como quem dorme.



Numa saudade imortal

talvez o deus que me habita

houvesse desejado a minha morte.