quinta-feira, 17 de março de 2011

Álvaro do Carvalhal

A vida que teve foi breve, como breve foi a obra que pôde escrever nos poucos anos em que viveu. Sobre sua vida há poucos registros e podemos afirmar que há um branco em torno de sua própria biografia. Uma amostra desta desinformação sobre Carvalhal é o registro sobre qual é o seu local de nascimento. Nasceu em 03 de fevereiro de 1844 em Algeriz ou em S. Pedro de Padrela[1], ambas freguesias da região de Valpaços e veio a falecer em 14 de março de 1868.
            Álvaro do Carvalhal morreu jovem, aos 24 anos, em Coimbra, na Universidade onde cursava Direito. Já passados 140 anos de sua morte, sua obra, após décadas de esquecimento e exclusão do cânone literário português, parece retomar algum fôlego com estudos que se realizam de uns tempos para cá. Talvez essa ausência de fortuna crítica se explique pelo fato de que o jovem autor não tenha visto nenhum de seus contos publicados integralmente em vida. Ou talvez ainda pelo seu lugar de borda em um campo literário marcadamente dominado pela literatura documental, como já havíamos apontado no início deste estudo.
            De sua infância não há informações, chegando-nos somente alguns registros mais claros após o seu ingresso, aos dezoito anos, no Liceu de Braga, onde Carvalhal já se apresentava ao mundo literário com a escrita de um drama para o teatro local.
Precocemente, em 1863, o jovem Carvalhal redige o prefácio de sua primeira obra conhecida, O Castigo da Vingança! e, em uma aguçada crítica literária, diz a respeito de seu próprio modo de escrever que utiliza um “estilo já pouco em moda”.
O Castigo da Vingança!- peça teatral em três atos, ambientada no Brasil e cujo protagonista é um negro, o que era por demais incomum àquela época - apresenta um enredo complicado e implausível, estando intimamente associado à literatura ultrarromântica, com a presença de segredos de família e revelações inesperadas:

A intriga de O castigo da Vingança! Situa-se num Brasil sem colorido e sem exotismo e gira em torno de um eixo passional, embora, de tempos a tempos, esboce uma nota crítica de cariz racial, talvez sob a influência dos dramas de Francisco Gomes de Amorim (1827-1891). (CARVALHAL In CARNEIRO, 1992, p. 26)

            A apresentação de estreia do drama de Carvalhal ocorreu em 28 de fevereiro de 1863 e obteve algum sucesso de público, tendo sido registrado no periódico O Distrito de Braga de 03 de março de 1863:

Sábado teve lugar o benefício a favor do nosso desventurado patrício e amigo o Sr. Barbosa: foi à cena o drama do jovem Álvaro do Carvalhal – O castigo da vingança – que é o primeiro ensaio deste novo dramaturgo, a quem o público fez mil elogios, e nós repetimos o eco: pedindo-lhe não recue... (MIRAGLIA, 2004, p. 271)

Em 1863, inicia-se a publicação de mais um de seus contos com o título Mistérios de uma lágrima no jornal O Progresso, em 24 de fevereiro, mas não há outros volumes do periódico nas bibliotecas portuguesas que possam comprovar a publicação integral do conto e reforça-se a ideia da incompletude do texto pelo fato deste não fazer parte do livro Contos que foi quase totalmente organizado pelo próprio Carvalhal.
Tanto Gianluca Miraglia em seu estudo bio-bibliográfico de Carvalhal, quanto J. Simões Dias registram que, da obra poética deste escritor, nada se pôde encontrar senão o registro de sua apresentação pelo próprio, no rodapé do jornal O Progresso de 10 de abril de 1863:

Os estudantes da academia do Porto deram ontem a sua primeira representação em benefício do exímio violinista Francisco de Sá Noronha ... ontem no fim da primeira comédia recitou o Sr. Álvaro do Carvalhal uma poesia que em muito devia penhorar os estudiosos mancebos portuenses. (MIRAGLIA, 2004, p. 272)

Em 1864, Carvalhal passava à Coimbra para iniciar seu curso de Direito. Como bem sabemos, neste período, Coimbra vivia momentos de intensa fermentação de ideias e tomava parte na inquietação da sociedade portuguesa. Neste cenário, um grupo de jovens intelectuais afirmam em seus escritos haver “progressivamente a consciencialização de geração nova em ruptura violenta com a geração precedente liderada esteticamente por Castilho”. (CARNEIRO, 1992, p. 27)
A eclosão de um conflito que nos anais da literatura portuguesa ficou conhecido como Questão Coimbrã ou Polêmica do Bom Senso e do Bom Gosto não tardaria a ocorrer e Álvaro do Carvalhal insere-se nessa polêmica.
A polêmica que envolveu os alunos da Universidade de Coimbra tornou-se célebre nas páginas da história literária portuguesa e representava um sinal claro do início de uma renovação ideológica que buscava a atualização cultural de Portugal em relação à Europa.
Envolvidos na ânsia de uma renovação literária, os jovens estudantes coimbrãos desejavam também a renovação de diversos aspectos da vida nacional portuguesa.
De um lado estavam os jovens estudantes de Coimbra que se juntavam em torno das ideias de renovação defendidas por Antero de Quental e de Teófilo Braga, de outro estavam Júlio de Castilho e seu protegido Pinheiro Chagas e outros intelectuais da época.
Em um texto de 1865, usando o “tom jocoso e sarcástico que acompanha sua obra”, Carvalhal sugere à Pinheiro Chagas “que converta a lira em roca; já que é efeminado e inútil com as suas cadências balofas, e vá cantar para a lareira com as criadas para não roubar espaço precioso aos jornais, nem ressuscitar sardanapalos com versinhos voluptuosos”. (CARNEIRO, 1992, p. 29)
Mais tarde, Carvalhal dividirá ainda com Antero de Quental e Teófilo Braga algumas páginas das revistas coimbrãs, mas a doença de que sofria o impedirá de atuar na polêmica literária que invadia Portugal.
Ainda em Coimbra, colabora com o jornal Commércio de Coimbra publicando Cartas a J.J. Rousseau, entre dezembro de 1864 e janeiro de 1865.
Outra obra incompleta de Carvalhal e que não faz parte de seu livro Contos é Crónica do século XIX. Deste conto, o que se supõe ser o primeiro capítulo foi publicado em março de 1865 na Revista Mosaico. Entretanto, não é possível identificar no texto publicado se este trabalho de Carvalhal apresentava-se já completo ou não, pairando sobre o texto a incerteza de que seja apenas o primeiro capítulo de uma obra bem mais extensa e cujo projeto não pôde ser levado adiante.
A atenção dada aos seus problemas de saúde destacam-se nas análises de sua vida e recebem certa atenção dos críticos, como no trecho citado de Augusto de Castro:

De facto, Álvaro do Carvalhal sofria desde o berço perturbações orgânicas graves. Um médico diagnosticara, sem dificuldade, uma lesão de coração e teve a brutalidade de o declarar ao doente. Álvaro viu-se condenado à morte aos vinte anos. (MIRAGLIA, 2004, p. 298)

O sofrimento e a dor de Carvalhal também merecem registro por seus analistas:

Ninguém sabe as noites horríveis daquele infeliz. Se velava, tinha medo daquela solidão nocturna povoada de fantasmas; se fechava os olhos, um pesadelo horrível o asfixiava. Por isso ele fugia do sono, como da morte, com que sonhava. A morte a persegui-lo a toda parte, e ele a procurar distrações para fugir-lhe. (CARNEIRO, 1992, p. 30)

A vida curta, porém intensa de Álvaro do Carvalhal, criou obras extraordinárias, que não obstante terem sido publicadas postumamente, e apesar de terem sido deixadas de fora do cânone literário português, representam de forma única um período sem igual da Literatura Portuguesa.
Álvaro do Carvalhal apresentou aos seus leitores estruturas narrativas bem elaboradas e adotou um discurso corrosivo que se voltava tanto contra a estética dominante como também contra a própria estética fantástica que praticava adotando uma perspectiva  metadiscursiva que imprimia a seus contos através da ironia.
No livro Contos, póstumo, editado pela primeira vez em 1868 pelo amigo J. Simões Dias, vemos reunidos os seus seis contos completos: A Febre do Jogo, J. Moreno, Honra Antiga, A Vestal!, O Punhal de Rosaura e Os Canibais.
Ainda em vida, Carvalhal buscará a divulgação dos contos que incursionam no ‘reino do fantástico’ através dos periódicos da época, entretanto, devido à pouca duração das publicações, não verá nenhuma de suas obras publicadas integralmente. Um dos fatores que certamente contribuíram para que nenhum de seus contos fosse publicado integralmente foi a instabilidade do campo literário português[2].
Dos seus contos reunidos, o primeiro a ser publicado, na Revista de Coimbra, em dezembro de 1865, vem a ser A Estátua Viva, posteriormente intitulado Os Canibais, mas a publicação chega apenas ao capítulo oito, restando um para a sua conclusão.
Em 1866, publica-se apenas o primeiro capítulo de A Febre do Jogo em A Academia. No mesmo ano, também é publicado o primeiro capítulo de Everardo em O Povo, conto que mais tarde foi renomeado como O Punhal de Rosaura.
Ao analisarmos as antologias que reúnem contos selecionados do século XIX, podemos constatar que Álvaro do Carvalhal, ainda não recebeu o merecido reconhecimento da crítica literária portuguesa, e, por isto, suas obras (sobretudo “Os Canibais”) figuram apenas em raríssimas e recentes coletâneas.
Durante demasiado tempo foi considerado um escritor maldito que adotava uma estética mal-vista e, talvez por esta conotação, não faça parte do cânone literário português oitocentista. Especialmente impulsionado pela produção do filme “Os Canibais”, dirigido por Manoel de Oliveira no final da década de 1980, baseado no conto homônimo de Carvalhal,  o escritor passa por um processo de redescoberta e seus contos o fixam na História da Literatura Portuguesa como “autor de contos singulares com incursões no reino do fantástico” (CARNEIRO, 1992 p. 28).
Como veremos a seguir, Carvalhal foi um escritor de raro gênio criativo e seus contos apresentam características capazes de o diferenciar dos outros autores que também investiram na produção de narrativas de temática fantástica.



[1] Esta é uma questão que aparentemente estava esclarecida através de um estudo de P. da Silveira e artigos na imprensa de E. Rodrigues como sendo S. Pedro de Padrela o local de nascimento, entretanto, retorna à discussão após a publicação de História da Literatura Portuguesa, em 2003, que aponta novamente a freguesia de Algeriz como a freguesia natal de Carvalhal.
[2] A noção de “campo literário” está desenvolvida por Pierre Bourdieu, em As regras da arte (Cia das Letras, 1996) e em Questões de sociologia (mesma editora, 1983).

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