quinta-feira, 24 de março de 2011

José Saramago

Pelo magnífico conjunto de sua obra, José Saramago recebeu o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1998.
"Nobel de Literatura é um prêmio literário concedido anualmente desde 1901. É atribuído a um autor de qualquer nacionalidade que, de acordo com as palavras do próprio Alfred Nobel, criador da distinção, tenha produzido, através do campo literário, o mais magnífico trabalho em uma direção ideal. O trabalho referido aqui significa, para Nobel, a obra inteira desse escritor, seus principais livros, sua mentalidade, seu estilo e suas filosofias, não distinguindo uma obra em particular." (http://pt.wikipedia.org/wiki/Nobel_de_Literatura)



"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara."
Palavras de José Saramago, na apresentação pública do seu romance Ensaio sobre a Cegueira.

Trecho do Livro:

O disco amarelo iluminou-se. Dois dos automóveis da frente aceleraram antes que o sinal vermelho aparecesse. Na passadeira de peões surgiu o desenho do homem verde. A gente que esperava começou a atravessar a rua pisando as faixas brancas pintadas na capa negra do asfalto, não há nada que menos se pareça com uma zebra, porém assim lhe chamam. Os automobilistas, impacientes, com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata. Os peões já acabaram de passar, mas o sinal de caminho livre para os carros vai tardar ainda alguns segundos, há quem sustente que esta demora, aparentemente tão insignificante, se a multiplicarmos pelos milhares de semáforos existentes na cidade e pelas mudanças sucessivas das três cores de cada um, é uma das causas mais consideráveis dos engorgitamentos da circulação automóvel, ou engarrafamentos, se quisermos usar o termo corrente.
O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila do meio está parado, deve haver ali um problema mecânico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velocidades que se encravou, ou uma avaria do sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha do circuito eléctrico, se é que não se lhe acabou simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso. O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do pára-brisas, enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego.
Ninguém o diria. Apreciados como neste momento é possível, apenas de relance, os olhos do homem parecem sãos, a íris apresenta-se nítida, luminosa, a esclerótica branca, compacta como porcelana. As pálpebras arregaladas, a pele crispada da cara, as sobrancelhas de repente revoltas, tudo isso, qualquer o pode verificar, é que se descompôs pela angústia. Num movimento rápido, o que estava à vista desapareceu atrás dos punhos fechados do homem, como se ele ainda quisesse reter no interior do cérebro a última imagem recolhida, uma luz vermelha, redonda, num semáforo. Estou cego, estou cego, repetia com desespero enquanto o ajudavam a sair do carro, e as lágrimas, rompendo, tomaram mais brilhantes os olhos que ele dizia estarem mortos. Isso passa, vai ver que isso passa, às vezes são nervos, disse uma mulher. O semáforo já tinha mudado de cor, alguns transeuntes curiosos aproximavam-se do grupo, e os condutores lá de trás, que não sabiam o que estava a acontecer, protestavam contra o que julgavam ser um acidente de trânsito vulgar, farol partido, guarda-lamas amolgado, nada que justificasse a confusão, Chamem a polícia, gritavam, tirem daí essa lata. O cego implorava, Por favor, alguém que me leve a casa. A mulher que falara de nervos foi de opinião que se devia chamar uma ambulância, transportar o pobrezinho ao hospital, mas o cego disse que isso não, não queria tanto, só pedia que o encaminhassem até à porta do prédio onde morava, Fica aqui muito perto, seria um grande favor que me faziam. E o carro, perguntou uma voz. Outra voz respondeu, A chave está no sítio, põe-se em cima do passeio. Não é preciso, interveio uma terceira voz, eu tomo conta do carro e acompanho este senhor a casa. Ouviram-se murmúrios de aprovação. O cego sentiu que o tomavam pelo braço, Venha, venha comigo, dizia-lhe a mesma voz. Ajudaram-no a sentar-se no lugar ao lado do condutor, puseram-lhe o cinto de segurança, Não vejo, não vejo, murmurava entre o choro, Diga-me onde mora, pediu o outro. Pelas janelas do carro espreitavam caras vorazes, gulosas da novidade. O cego ergueu as mãos diante dos olhos, moveu-as, Nada, é como se estivesse no meio de um nevoeiro, é como se tivesse caído num mar de leite, Mas a cegueira não é assim, disse o outro, a cegueira dizem que é negra, Pois eu vejo tudo branco, Se calhar a mulherzinha tinha razão, pode ser coisa de nervos, os nervos são o diabo, Eu bem sei o que é, uma desgraça, sim, uma desgraça, Diga-me onde mora, por favor, ao mesmo tempo ouviu-se o arranque do motor. Balbuciando, como se a falta de visão lhe tivesse enfraquecido a memória, o cego deu uma direcção, depois disse, Não sei como lhe hei-de agradecer, e o outro respondeu, Ora, não tem importância, hoje por si, amanhã por mim, não sabemos para o que estamos guardados, Tem razão, quem me diria, quando saí de casa esta manhã, que estava para me acontecer uma fatalidade como esta. Estranhou que continuassem parados, Por que é que não andamos, perguntou, O sinal está no vermelho, respondeu o outro, Ah, fez o cego, e pôs-se a chorar outra vez. A partir de agora deixara de poder saber quando o sinal estava vermelho.
Tal como o cego havia dito, a casa ficava perto. Mas os passeios estavam todos ocupados por automóveis, não encontraram espaço para arrumar o carro, por isso foram obrigados a ir procurar sítio numa das ruas transversais. Ali, como por causa da estreiteza do passeio a porta do assento ao lado do condutor ia ficar a pouco mais de um palmo da parede, o cego, para não passar pela angústia de arrastar-se de um assento ao outro, com a alavanca da caixa de velocidades e o volante a atrapalhá-lo, teve de sair primeiro. Desamparado, no meio da rua, sentindo que o chão lhe fugia debaixo dos pés, tentou conter a aflição que lhe subia pela garganta. Agitava as mãos à frente da cara, nervosamente, como se nadasse naquilo a que chamara um mar de leite, mas a boca já se lhe abria para lançar um grito de socorro, foi no último momento que a mão do outro lhe tocou de leve no braço, Acalme-se, eu levo-o. Foram andando muito devagar, com o medo de cair o cego arrastava os pés, mas isso fazia-o tropeçar nas irregularidades da calçada, Tenha paciência, já estamos quase a chegar, murmurava o outro, e um pouco mais adiante perguntou, Está alguém em sua casa que possa tomar conta de si, e o cego respondeu, Não sei, a minha mulher ainda não deve ter vindo do trabalho, eu hoje é que calhei sair mais cedo, e logo me sucede isto, Verá que não vai ser nada, nunca ouvi dizer que alguém tivesse ficado cego assim de repente, Que eu até me gabava de não usar óculos, nunca precisei, Então, já vê. Tinham chegado à porta do prédio, duas mulheres da vizinhança olharam curiosas a cena, vai ali aquele vizinho levado pelo braço, mas nenhuma delas teve a ideia de perguntar, Entrou-lhe alguma coisa para os olhos, não lhes ocorreu, e tão-pouco ele lhes poderia responder, Sim, entrou-me um mar de leite. Já dentro do prédio, o cego disse, Muito obrigado, desculpe o transtorno que lhe causei, agora eu cá me arranjo, Ora essa, eu subo consigo, não ficaria descansado se o deixasse aqui. Entraram dificilmente no elevador apertado, Em que andar mora, No terceiro, não imagina quanto lhe estou agradecido, Não me agradeça, hoje por si, Sim, tem razão, amanhã por si. O elevador parou, saíram para o patamar, Quer que o ajude a abrir a porta, Obrigado, isso eu acho que posso fazer. Tirou do bolso um pequeno molho de chaves, tacteou-as, uma por uma, ao longo do denteado, disse, Esta deve de ser, e, apalpando a fechadura com as pontas dos dedos da mão esquerda, tentou abrir a porta, Não é esta, Deixe-me cá ver, eu ajudo-o. A porta abriu-se à terceira tentativa. Então o cego perguntou para dentro, Estás aí. Ninguém respondeu, e ele, Era o que eu dizia, ainda não veio. Levando as mãos adiante, às apalpadelas, passou para o corredor, depois voltou-se cautelosamente, orientando a cara na direcção em que calculava encontrar-se o outro, Como poderei agradecer-lhe, disse, Não fiz mais que o meu dever, justificou o bom samaritano, não me agradeça, e acrescentou, Quer que o ajude a instalar-se, que lhe faça companhia enquanto a sua mulher não chega. O zelo pareceu de repente suspeito ao cego, evidentemente não iria deixar entrar em casa uma pessoa desconhecida que, no fim de contas, bem poderia estar a tramar, naquele preciso momento, como haveria de reduzir, atar e amordaçar o infeliz cego sem defesa, para depois deitar a mão ao que encontrasse de valor. Não é preciso, não se incomode, disse, eu fico bem, e repetiu enquanto ia fechando a porta lentamente, Não é preciso, não é preciso.
Suspirou de alívio ao ouvir o ruído do elevador descendo. Num gesto maquinal, sem se lembrar do estado em que se encontrava, afastou a tampa do ralo da porta e espreitou para fora. Era como se houvesse um muro branco do outro lado. Sentia o contacto do aro metálico na arcada supraciliar, roçava com as pestanas a minúscula lente, mas não os podia ver, a insondável brancura cobria tudo. Sabia que estava na sua casa, reconhecia-a pelo odor, pela atmosfera, pelo silêncio, distinguia os móveis e os objectos só de tocar-lhes, passar-lhes os dedos por cima, ao de leve, mas era também como se tudo isto estivesse já a diluir-se numa espécie de estranha dimensão, sem direcções nem referências, sem norte nem sul, sem baixo nem alto. Como toda a gente provavelmente o fez, jogara algumas vezes consigo mesmo, na adolescência, ao jogo do E se eu fosse cego, e chegara à conclusão, ao cabo de cinco minutos com os olhos fechados, de que a cegueira, sem dúvida alguma uma terrível desgraça, poderia, ainda assim, ser relativamente suportável se a vítima de tal infelicidade tivesse conservado uma lembrança suficiente, não só das cores, mas também das formas e dos planos, das superfícies e dos contornos, supondo, claro está, que a dita cegueira não fosse de nascença. Chegara mesmo ao ponto de pensar que a escuridão em que os cegos viviam não era, afinal, senão a simples ausência da luz, que o que chamamos cegueira era algo que se limitava a cobrir a aparência dos seres e das coisas, deixando-os intactos por trás do seu véu negro. Agora, pelo contrário, ei-lo que se encontrava mergulhado numa brancura tão luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres, tomando-os, por essa maneira, duplamente invisíveis.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Álvaro do Carvalhal

A vida que teve foi breve, como breve foi a obra que pôde escrever nos poucos anos em que viveu. Sobre sua vida há poucos registros e podemos afirmar que há um branco em torno de sua própria biografia. Uma amostra desta desinformação sobre Carvalhal é o registro sobre qual é o seu local de nascimento. Nasceu em 03 de fevereiro de 1844 em Algeriz ou em S. Pedro de Padrela[1], ambas freguesias da região de Valpaços e veio a falecer em 14 de março de 1868.
            Álvaro do Carvalhal morreu jovem, aos 24 anos, em Coimbra, na Universidade onde cursava Direito. Já passados 140 anos de sua morte, sua obra, após décadas de esquecimento e exclusão do cânone literário português, parece retomar algum fôlego com estudos que se realizam de uns tempos para cá. Talvez essa ausência de fortuna crítica se explique pelo fato de que o jovem autor não tenha visto nenhum de seus contos publicados integralmente em vida. Ou talvez ainda pelo seu lugar de borda em um campo literário marcadamente dominado pela literatura documental, como já havíamos apontado no início deste estudo.
            De sua infância não há informações, chegando-nos somente alguns registros mais claros após o seu ingresso, aos dezoito anos, no Liceu de Braga, onde Carvalhal já se apresentava ao mundo literário com a escrita de um drama para o teatro local.
Precocemente, em 1863, o jovem Carvalhal redige o prefácio de sua primeira obra conhecida, O Castigo da Vingança! e, em uma aguçada crítica literária, diz a respeito de seu próprio modo de escrever que utiliza um “estilo já pouco em moda”.
O Castigo da Vingança!- peça teatral em três atos, ambientada no Brasil e cujo protagonista é um negro, o que era por demais incomum àquela época - apresenta um enredo complicado e implausível, estando intimamente associado à literatura ultrarromântica, com a presença de segredos de família e revelações inesperadas:

A intriga de O castigo da Vingança! Situa-se num Brasil sem colorido e sem exotismo e gira em torno de um eixo passional, embora, de tempos a tempos, esboce uma nota crítica de cariz racial, talvez sob a influência dos dramas de Francisco Gomes de Amorim (1827-1891). (CARVALHAL In CARNEIRO, 1992, p. 26)

            A apresentação de estreia do drama de Carvalhal ocorreu em 28 de fevereiro de 1863 e obteve algum sucesso de público, tendo sido registrado no periódico O Distrito de Braga de 03 de março de 1863:

Sábado teve lugar o benefício a favor do nosso desventurado patrício e amigo o Sr. Barbosa: foi à cena o drama do jovem Álvaro do Carvalhal – O castigo da vingança – que é o primeiro ensaio deste novo dramaturgo, a quem o público fez mil elogios, e nós repetimos o eco: pedindo-lhe não recue... (MIRAGLIA, 2004, p. 271)

Em 1863, inicia-se a publicação de mais um de seus contos com o título Mistérios de uma lágrima no jornal O Progresso, em 24 de fevereiro, mas não há outros volumes do periódico nas bibliotecas portuguesas que possam comprovar a publicação integral do conto e reforça-se a ideia da incompletude do texto pelo fato deste não fazer parte do livro Contos que foi quase totalmente organizado pelo próprio Carvalhal.
Tanto Gianluca Miraglia em seu estudo bio-bibliográfico de Carvalhal, quanto J. Simões Dias registram que, da obra poética deste escritor, nada se pôde encontrar senão o registro de sua apresentação pelo próprio, no rodapé do jornal O Progresso de 10 de abril de 1863:

Os estudantes da academia do Porto deram ontem a sua primeira representação em benefício do exímio violinista Francisco de Sá Noronha ... ontem no fim da primeira comédia recitou o Sr. Álvaro do Carvalhal uma poesia que em muito devia penhorar os estudiosos mancebos portuenses. (MIRAGLIA, 2004, p. 272)

Em 1864, Carvalhal passava à Coimbra para iniciar seu curso de Direito. Como bem sabemos, neste período, Coimbra vivia momentos de intensa fermentação de ideias e tomava parte na inquietação da sociedade portuguesa. Neste cenário, um grupo de jovens intelectuais afirmam em seus escritos haver “progressivamente a consciencialização de geração nova em ruptura violenta com a geração precedente liderada esteticamente por Castilho”. (CARNEIRO, 1992, p. 27)
A eclosão de um conflito que nos anais da literatura portuguesa ficou conhecido como Questão Coimbrã ou Polêmica do Bom Senso e do Bom Gosto não tardaria a ocorrer e Álvaro do Carvalhal insere-se nessa polêmica.
A polêmica que envolveu os alunos da Universidade de Coimbra tornou-se célebre nas páginas da história literária portuguesa e representava um sinal claro do início de uma renovação ideológica que buscava a atualização cultural de Portugal em relação à Europa.
Envolvidos na ânsia de uma renovação literária, os jovens estudantes coimbrãos desejavam também a renovação de diversos aspectos da vida nacional portuguesa.
De um lado estavam os jovens estudantes de Coimbra que se juntavam em torno das ideias de renovação defendidas por Antero de Quental e de Teófilo Braga, de outro estavam Júlio de Castilho e seu protegido Pinheiro Chagas e outros intelectuais da época.
Em um texto de 1865, usando o “tom jocoso e sarcástico que acompanha sua obra”, Carvalhal sugere à Pinheiro Chagas “que converta a lira em roca; já que é efeminado e inútil com as suas cadências balofas, e vá cantar para a lareira com as criadas para não roubar espaço precioso aos jornais, nem ressuscitar sardanapalos com versinhos voluptuosos”. (CARNEIRO, 1992, p. 29)
Mais tarde, Carvalhal dividirá ainda com Antero de Quental e Teófilo Braga algumas páginas das revistas coimbrãs, mas a doença de que sofria o impedirá de atuar na polêmica literária que invadia Portugal.
Ainda em Coimbra, colabora com o jornal Commércio de Coimbra publicando Cartas a J.J. Rousseau, entre dezembro de 1864 e janeiro de 1865.
Outra obra incompleta de Carvalhal e que não faz parte de seu livro Contos é Crónica do século XIX. Deste conto, o que se supõe ser o primeiro capítulo foi publicado em março de 1865 na Revista Mosaico. Entretanto, não é possível identificar no texto publicado se este trabalho de Carvalhal apresentava-se já completo ou não, pairando sobre o texto a incerteza de que seja apenas o primeiro capítulo de uma obra bem mais extensa e cujo projeto não pôde ser levado adiante.
A atenção dada aos seus problemas de saúde destacam-se nas análises de sua vida e recebem certa atenção dos críticos, como no trecho citado de Augusto de Castro:

De facto, Álvaro do Carvalhal sofria desde o berço perturbações orgânicas graves. Um médico diagnosticara, sem dificuldade, uma lesão de coração e teve a brutalidade de o declarar ao doente. Álvaro viu-se condenado à morte aos vinte anos. (MIRAGLIA, 2004, p. 298)

O sofrimento e a dor de Carvalhal também merecem registro por seus analistas:

Ninguém sabe as noites horríveis daquele infeliz. Se velava, tinha medo daquela solidão nocturna povoada de fantasmas; se fechava os olhos, um pesadelo horrível o asfixiava. Por isso ele fugia do sono, como da morte, com que sonhava. A morte a persegui-lo a toda parte, e ele a procurar distrações para fugir-lhe. (CARNEIRO, 1992, p. 30)

A vida curta, porém intensa de Álvaro do Carvalhal, criou obras extraordinárias, que não obstante terem sido publicadas postumamente, e apesar de terem sido deixadas de fora do cânone literário português, representam de forma única um período sem igual da Literatura Portuguesa.
Álvaro do Carvalhal apresentou aos seus leitores estruturas narrativas bem elaboradas e adotou um discurso corrosivo que se voltava tanto contra a estética dominante como também contra a própria estética fantástica que praticava adotando uma perspectiva  metadiscursiva que imprimia a seus contos através da ironia.
No livro Contos, póstumo, editado pela primeira vez em 1868 pelo amigo J. Simões Dias, vemos reunidos os seus seis contos completos: A Febre do Jogo, J. Moreno, Honra Antiga, A Vestal!, O Punhal de Rosaura e Os Canibais.
Ainda em vida, Carvalhal buscará a divulgação dos contos que incursionam no ‘reino do fantástico’ através dos periódicos da época, entretanto, devido à pouca duração das publicações, não verá nenhuma de suas obras publicadas integralmente. Um dos fatores que certamente contribuíram para que nenhum de seus contos fosse publicado integralmente foi a instabilidade do campo literário português[2].
Dos seus contos reunidos, o primeiro a ser publicado, na Revista de Coimbra, em dezembro de 1865, vem a ser A Estátua Viva, posteriormente intitulado Os Canibais, mas a publicação chega apenas ao capítulo oito, restando um para a sua conclusão.
Em 1866, publica-se apenas o primeiro capítulo de A Febre do Jogo em A Academia. No mesmo ano, também é publicado o primeiro capítulo de Everardo em O Povo, conto que mais tarde foi renomeado como O Punhal de Rosaura.
Ao analisarmos as antologias que reúnem contos selecionados do século XIX, podemos constatar que Álvaro do Carvalhal, ainda não recebeu o merecido reconhecimento da crítica literária portuguesa, e, por isto, suas obras (sobretudo “Os Canibais”) figuram apenas em raríssimas e recentes coletâneas.
Durante demasiado tempo foi considerado um escritor maldito que adotava uma estética mal-vista e, talvez por esta conotação, não faça parte do cânone literário português oitocentista. Especialmente impulsionado pela produção do filme “Os Canibais”, dirigido por Manoel de Oliveira no final da década de 1980, baseado no conto homônimo de Carvalhal,  o escritor passa por um processo de redescoberta e seus contos o fixam na História da Literatura Portuguesa como “autor de contos singulares com incursões no reino do fantástico” (CARNEIRO, 1992 p. 28).
Como veremos a seguir, Carvalhal foi um escritor de raro gênio criativo e seus contos apresentam características capazes de o diferenciar dos outros autores que também investiram na produção de narrativas de temática fantástica.



[1] Esta é uma questão que aparentemente estava esclarecida através de um estudo de P. da Silveira e artigos na imprensa de E. Rodrigues como sendo S. Pedro de Padrela o local de nascimento, entretanto, retorna à discussão após a publicação de História da Literatura Portuguesa, em 2003, que aponta novamente a freguesia de Algeriz como a freguesia natal de Carvalhal.
[2] A noção de “campo literário” está desenvolvida por Pierre Bourdieu, em As regras da arte (Cia das Letras, 1996) e em Questões de sociologia (mesma editora, 1983).

quarta-feira, 16 de março de 2011

Edgar Alan Poe




Tudo o que vemos ou parecemos não passa de um sonho dentro de um sonho.

A Dream within a Dream.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Hoje é Dia Nacional da Poesia!!!

O Dia Nacional da Poesia, não por acaso, coincide com a comemoração do nascimento do grande escritor baiano Castro Alves. Poeta do Romantismo, foi autor de belíssimas obras, como o “Navio Negreiro” e “Espumas Flutuantes”. Sua arte era movida pelo amor e pela luta por liberdade e justiça.
O que é poesia
Poesia é uma arte literária e, como arte, recria a realidade. O poeta Ferreira Gullar diz que o artista cria um outro mundo “mais bonito ou mais intenso ou mais significativo ou mais ordenado – por cima da realidade imediata”.
Para outros, a arte literária nem sempre recria. É o caso de Aristóteles, filósofo grego que afirmava que “a arte literária é mimese (imitação); é a arte que imita pela palavra”.
Declamando ou escrevendo, fazer poesia é expressar-se de forma a combinar palavras, mexer com o seu significado, utilizar a estrutura da mensagem. Isto é a função poética.
A poesia sempre se encontra dentro de um contexto cultural e histórico. Os vários estilos poéticos, as fases de cada autor, os acontecimentos da época e tantas outras interferências muitas vezes se misturam à obra e lhe dão novos significados.


domingo, 13 de março de 2011

Graciliano Ramos - Vidas Secas

Trecho de Vidas Secas

"Fabiano ouviu os sonhos da mulher, deslumbrado, relaxou os músculos, e o saco da comida escorregou-lhe no ombro. Aprumou-se, deu um puxão à carga. A conversa de Sinhá Vitória servira muito: haviam caminhado léguas quase sem sentir. De repente veio a fraqueza. Devia ser fome. Fabiano ergueu a cabeça, piscou os olhos por baixo da aba negra e queimada do chapéu de couro. Meio dia, pouco mais ou menos. Baixou os olhos encandeados, procurou descobrir na planície uma sombra ou sinal de água. Estava realmente com um buraco no estômago. Endireitou o saco de novo e, para conservá-lo em equilíbrio, andou pendido, um ombro alto, outro baixo. O otimismo de Sinhá Vitória já não lhe fazia mossa. Ela ainda se agarrava a fantasias. Coitada. Armar semelhantes planos, assim bamba, o peso do baú e da cabeça enterrando-lhe o pescoço no corpo.
Foram descansar sob os garranchos de uma quixabeira, mastigaram punhados de farinha e pedaços de carne, beberam na cuia uns goles de água. Na testa de Fabiano o suor secava, misturando-se à poeira que enchia as rugas fundas, embebendo-se na correia do chapéu. A tontura desaparecera, o estômago sossegara. Quando partissem, a cabaça não envergaria o espinhaço de Sinhá Vitória. Instintivamente procurou no descampado indício de fonte. Um friozinho agudo arrepiou-o. Mostrou os dentes sujos num riso infantil. Como podia ter frio com semelhante calor? Ficou um instante assim besta, olhando os filhos, olhando os filhos, a mulher e a bagagem pesada. O menino mais velho esbrugava um osso com apetite. Fabiano lembrou-se da cachorra Baleia, outro arrepio correu-lhe a espinha, o riso besta esmoreceu.
Se achassem água ali por perto, beberiam muito, sairiam cheios, arrastando os pés. Fabiano comunicou isto a Sinhá Vitória e indicou uma depressão do terreno. Era um bebedouro, não era? Sinhá Vitória estirou o beiço, indecisa, e Fabiano afirmou o que havia perguntado. Então ele não conhecia aquelas paragens? Estava a falar variedades? Se a mulher tivesse concordado, Fabiano arrefeceria, pois lhe faltava convicção; como Sinhá Vitória tinha dúvidas, Fabiano exaltava-se, procurava incutir-lhe coragem. Inventava o bebedouro, descrevia-o, mentia sem saber que estava mentindo. E Sinhá Vitória excitava-se, transmitia-lhe esperanças. Andavam por lugares conhecidos. Qual era o emprego de Fabiano? Tratar de bichos, explorar os arredores, no lombo de um cavalo. E ele explorava tudo. Para lá dos montes afastados havia outro mundo, um mundo temeroso; mas para cá, na planície, tinha de cor plantas e animais, buracos e pedras.
E andavam para o Sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos."
(Graciliano Ramos - Vidas secas, pág. 130, 131,134)

sábado, 12 de março de 2011

Cecília Meireles

Cecília Meireles é uma das grandes escritoras da literatura brasileira. Seus poemas encantam os leitores de todas as idades. Nasceu no dia 7 de novembro de 1901, na cidade do Rio de Janeiro e seu nome completo era Cecília Benevides de Carvalho Meireles.
Por volta dos nove anos de idade, Cecília começou a escrever suas primeiras poesias.  
Formou-se professora (cursou a Escola Normal) e com apenas 18 anos de idade, no ano de 1919, publicou seu primeiro livro “Espectro” (vários poemas de caráter simbolista). Embora fosse o auge do Modernismo, a jovem poetisa foi fortemente influenciada pelo movimento literário simbolista. 
Sua formação como professora e interesse pela educação levou-a a fundar a primeira biblioteca infantil do Rio de Janeiro no ano de 1934. Escreveu várias obras na área de literatura infantil como, por exemplo, “O cavalinho branco”, “Colar de Carolina”, “Sonhos de menina”, “O menino azul”, entre outros. Estes poemas infantis são marcados pela musicalidade (uma das principais características de sua poesia). 

sexta-feira, 11 de março de 2011

Ou isto ou aquilo - Cecília Meireles

Ou isto ou aquilo.


Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo...
e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranqüilo.
Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.




quinta-feira, 10 de março de 2011

Poesia - Fernando Pessoa

Todo momento é momento para ler e pensar sobre uma boa poesia. O que pode ser melhor iniciar este blog do que com uma poesia do incrível poeta português Fernando Pessoa?

Neste poema, Fernando Pessoa imortalizou o pensamento que dominou uma época da história portuguesa, mas mais do que isso, sintetizou sentimentos que falam profundamente à alma portuguesa e também a de nós todos, brasileiros.

Navegar é preciso

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.