quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Canção Amiga - Drummond

Você sabia que na nota de 50 cruzados novos havia impresso um poema de Carlos Drummond de Andrade? Veja que poema era esse:

Canção Amiga


Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Lágrimas - Cesário Verde

Lágrimas               (Cesário Verde)Ela chorava muito e muito, aos cantos, 
Frenética, com gestos desabridos; 
Nos cabelos, em ânsias desprendidos 
Brilhavam como pérolas os prantos. 

Ele, o amante, sereno como os santos, 
Deitado no sofá, pés aquecidos, 
Ao sentir-lhe os soluços consumidos, 
Sorria-se cantando alegres cantos. 

E dizia-lhe então, de olhos enxutos: 
- "Tu pareces nascida da rajada, 
"Tens despeitos raivosos, resolutos: 

"Chora, chora, mulher arrenegada; 
"Lagrimeja por esses aquedutos... 
-"Quero um banho tomar de água salgada." 

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

A Alma do Lázaro - José de Alencar


O que é?
"O "Portal Domínio Público", lançado em novembro de 2004 (com um acervo inicial de 500 obras), propõe o compartilhamento de conhecimentos de forma equânime, colocando à disposição de todos os usuários da rede mundial de computadores - Internet - uma biblioteca virtual que deverá se constituir em referência para professores, alunos, pesquisadores e para a população em geral."







(José de Alencar)


Na obra "A Alma de Lázaro", José de Alencar transporta o leitor para o diário de um leproso. Terror e sofrimento, solidão e solidariedade, repugnância e sentimento. Ódio e amor. Possui um enredo macabro e fascinante, que fará com que o leitor se prender à leitura.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

O Sétimo Juramento - Paulina Chiziane

«- David? - Sim? - Viste? - Vi. - O que pensas? - Nada. - Deixa-te de rodeios. Fala abertamente. - Vi, sim. Sempre ouvi falar de histórias de feitiçaria, mas nada do que ouvi se compara com isto. Parece uma montagem de cinema, contos de fadas, coisas do maravilhoso e do fantástico. Diz-me que estive a sonhar, Lourenço, vá, diz-me, isto não pode ser real!» [...] A perplexidade de David vai-se tornando nossa, à medida que mergulhamos no mundo fantástico que Paulina Chiziane nos oferece. Um mundo de feitiços e tabus, de magia negra e fantasia, de sonhos e de pesadelos, de luz e de trevas. Um mundo de contrastes e contradições, em que as forças do bem e do mal travam uma luta contínua e titânica. Um mundo de destruição e corrupção, mas também um mundo a que os valores da tradição e a sabedoria de séculos emprestam uma inegável beleza. Um mundo inquietante, assustador, misterioso, em que a atracção pelo abismo é incontrolável e a realidade do dia-a-dia, tal como supomos conhecê-lo, é permanentemente questionada. Será que David esteve mesmo a sonhar?

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Canção do Exílio - Gonçalves Dias

Canção do Exílio
(Gonçalves Dias)

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

As Cismas do Destino - Augusto dos Anjos

As Cismas do Destino
(Augusto dos Anjos)

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!
Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia… O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.
Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!
A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!
Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!
Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.
E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.
(Trecho de As Cismas do Destino, de Augusto dos Anjos).

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O ano da morte de Ricardo Reis - José Saramago

"«Um tempo múltiplo. Labiríntico. As histórias das sociedades humanas. Ricardo Reis chega a Lisboa em finais de Dezembro de 1935. Fica até Setembro de 1936. Uma personagem vinda de uma outra ficção, a da heteronímia de Fernando Pessoa. E um movimento inverso, logo a começar: ""Aqui onde o mar se acaba e a terra principia""; o virar ao contrário o verso de Camões: ""Onde a terra acaba e o mar começa"". Em Camões, o movimento é da terra para o mar; no livro de Saramago temos Ricardo Reis a regressar a Portugal por mar. É substituído o movimento épico da partida. Mais uma vez, a história na escrita de Saramago. E as relações entre a vida e a morte. Ricardo Reis chega a Lisboa em finais de Dezembro e Fernando Pessoa morreu a 30 de Novembro. Ricardo Reis visita-o ao cemitério. Um tempo complexo. O fascismo consolida-se em Portugal.» (Diário de Notícias, 9 de Outubro de 1998)"

quarta-feira, 4 de julho de 2012

A um ausente - Carlos Drummond de Andrade

A UM AUSENTE

Carlos Drummond de Andrade

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Vinícius de Moraes


Quero - Carlos Drummond de Andrade

Quero 

Carlos Drummond de Andrade

Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao não dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.

No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amastes antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Senhora (trecho) - José de Alencar

Senhora (trecho)
José de Alencar


Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela. 
Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro; foi proclamada a rainha dos salões. 
Tornou-se a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade. 
Era rica e formosa. 
Duas opulências, que se realçam como a flor em vaso de alabastro; dois esplendores que se refletem, como o raio de sol no prisma do diamante. 
Quem não se recorda da Aurélia Camargo, que atravessou o firmamento da Corte como brilhante meteoro, e apagou-se de repente no meio do deslumbramento que produzira o seu fulgor? 
Tinha ela dezoito anos quando apareceu a primeira vez na sociedade. Não a conheciam; e logo buscaram todos com avidez informações acerca da grande novidade do dia.
Dizia-se muita coisa que não repetirei agora, pois a seu tempo saberemos a verdade, sem os comentos malévolos de que usam vesti-la os noveleiros.
Aurélia era órfã; e tinha em sua companhia uma velha parenta, viúva, D. Firmina Mascarenhas, que sempre a acompanhava na sociedade.
Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda, para condescender com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha admitido ainda certa emancipação feminina.
Guardando com a viúva as deferências devidas à idade, a moça não declinava um instante do firme propósito de governar sua casa e dirigir suas ações como entendesse.
 Constava também que Aurélia tinha um tutor; mas essa entidade desconhecida, a julgar pelo caráter da pupila, não devia exercer maior influência em sua vontade, do que a velha parenta.
A convicção geral era que o futuro da moça dependia exclusivamente de suas inclinações ou de seu capricho; e por isso todas as adorações se iam prostrar aos próprios pés do ídolo.
Assaltada por uma turba de pretendentes que a disputavam como o prêmio da vitória, Aurélia, com sagacidade admirável em sua idade, avaliou da situação difícil em que se achava, e dos perigos que a ameaçavam.
Daí provinha talvez a expressão cheia de desdém e um certo ar provocador, que eriçavam a sua beleza aliás tão correta e cinzelada para a meiga e serena expansão d’alma.
Se o lindo semblante não se impregnasse constantemente, ainda nos momentos de cisma e distração, dessa tinta de sarcasmo, ninguém veria nela a verdadeira fisionomia de Aurélia, e sim a máscara de alguma profunda decepção.
Como acreditar que a natureza houvesse traçado as linhas tão puras e límpidas daquele perfil para quebrar-lhes a harmonia com o riso de uma pungente ironia?
Os olhos grandes e rasgados, Deus não os aveludaria com a mais inefável ternura, se os destinasse para vibrar chispas de escárnio.
Para que a perfeição estatuária do talhe de sílfide, se em vez de arfar ao suave influxo do amor, ele devia ser agitado pelos assomos do desprezo?
Na sala, cercada de adoradores, no meio das esplêndidas reverberações de sua beleza, Aurélia bem longe de inebriar-se da adoração produzida por sua formosura, e do culto que lhe rendiam; ao contrário parecia unicamente possuída de indignação por essa turba vil e abjeta.
Não era um triunfo que ela julgasse digno de si, a torpe humilhação dessa gente ante sua riqueza.
Era um desafio, que lançava ao mundo; orgulhosa de esmagá-lo sob a planta, como a um réptil venenoso.
E o mundo é assim feito; que foi o fulgor satânico da beleza dessa mulher, a sua maior sedução. Na acerba veemência da alma revolta, pressentiam-se abismos de paixão; e entrevia-se que procelas de volúpia havia de ter o amor da virgem bacante.
Se o sinistro vislumbre se apagasse de súbito, deixando a formosa estátua na penumbra suave da candura e inocência, o anjo casto e puro que havia naquela, como há em todas as moças, talvez passasse desapercebido pelo turbilhão.
As revoltas mais impetuosas de Aurélia eram justamente contra a riqueza que lhe servia de trono, e sem a qual nunca por certo, apesar de suas prendas, receberia como rainha desdenhosa, a vassalagem que lhe rendiam.
Por isso mesmo considerava ela o ouro, um vil metal que rebaixava os homens; e no íntimo sentia-se profundamente humilhada pensando que para toda essa gente que a cercava, ela, a sua pessoa, não merecia uma só das bajulações que tributavam a cada um de seus mil contos de réis.
Nunca da pena de algum Chatterton desconhecido saíram mais cruciantes apóstrofes contra o dinheiro, do que vibrava muitas vezes o lábio perfumado dessa feiticeira menina, no seio de sua opulência.
Um traço basta para desenhá-la sob esta face.
Convencida de que todos os seus inúmeros apaixonados, sem exceção de um, a pretendiam unicamente pela riqueza, Aurélia reagia contra essa afronta, aplicando a esses indivíduos o mesmo estalão.
Assim costumava ela indicar o merecimento de cada um dos pretendentes, dando-lhes certo valor monetário. Em linguagem financeira, Aurélia cotava os seus adoradores pelo preço que razoavelmente poderiam obter no mercado matrimonial.
Uma noite, no Cassino, a Lísia Soares, que fazia-se íntima com ela, e desejava ardentemente vê-la casada, dirigiu-lhe um gracejo acerca do Alfredo Moreira, rapaz elegante que chegara recentemente da Europa:
- É um moço muito distinto, respondeu Aurélia sorrindo; vale bem como noivo cem contos de réis; mas eu tenho dinheiro para pagar um marido de maior preço, Lísia; não me contento com esse.
Riam-se todos destes ditos de Aurélia, e os lançavam à conta de gracinhas de moça espirituosa; porém a maior parte das senhoras, sobretudo aquelas que tinham filhas moças, não cansavam de criticar desses modos desenvoltos, impróprios de meninas bem-educadas.
Os adoradores de Aurélia sabiam, pois ela não fazia mistério, do preço de sua cotação no rol da moça; e longe de se agastarem com a franqueza, divertiam-se com o jogo que muitas vezes resultava do ágio de suas ações naquela empresa nupcial.
Dava-se isto quando qualquer dos apaixonados tinha a felicidade de fazer alguma cousa a contento da moça e satisfazer-lhe as fantasias; porque nesse caso ela elevava-lhe a cotação, assim como abaixava a daquele que a contrariava ou incorria em seu desagrado.
Muito devia a cobiça embrutecer esses homens, ou cegá-los a paixão, para não verem o frio escárnio com que Aurélia os ludibriava nestes brincos ridículos, que eles tomavam por garridices de menina, e não eram senão ímpetos de uma irritação íntima e talvez mórbida.
A verdade é que todos porfiavam, às vezes colhidos por desânimo passageiro, mas logo restaurados por uma esperança obstinada, nenhum se resolvia a abandonar o campo; e muito menos o Alfredo Moreira que parecia figurar a cabeça do rol.
Não acompanharei Aurélia em sua efêmera passagem pelos salões da Corte, onde viu, jungido a seu carro de triunfo, tudo que a nossa sociedade tinha de mais elevado e brilhante.
Proponho-me unicamente a referir o drama íntimo e estranho que decidiu do destino dessa mulher singular.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Memória - Carlos Drummond


A Máquina do Mundo - Carlos Drummond de Andrade

A Máquina do Mundo
(Carlos Drummond de Andrade)

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas.
(Trecho de A Máquina do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade).

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Memorial de Aires - Machado de Assis


O que é?
"O "Portal Domínio Público", lançado em novembro de 2004 (com um acervo inicial de 500 obras), propõe o compartilhamento de conhecimentos de forma equânime, colocando à disposição de todos os usuários da rede mundial de computadores - Internet - uma biblioteca virtual que deverá se constituir em referência para professores, alunos, pesquisadores e para a população em geral."







(Machado de Assis)

Memorial de Aires foi publicado pela primeira vez em 1908, mesmo ano em que seu autor, Machado de Assis morreu no Rio de Janeiro. A narrativa, desenvolvida como anotações em um diário, trata da experiências vividas pelo Conselheiro Aires, personagem que aparece em outras histórias criadas pelo autor.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

As Pombas - Raimundo Correia

As Pombas
(Raimundo Correia)

Vai-se a primeira pomba despertada…
Vai-se outra mais… mais outra… enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguínea e fresca a madrugada.
E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada.
Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;
No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem… Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Invenção de Orfeu - Jorge de Lima

Invenção de Orfeu
(Jorge de Lima)

1.
Um barão assinalado
sem brasão, sem gume e fama
cumpre apenas o seu fado:
amar, louvar sua dama,
dia e noite navegar,
que é de aquém e de além-mar
a ilha que busca e amor que ama.
Nobre apenas de memórias,
vai lembrando de seus dias,
dias que são as histórias,
histórias que são porfias
de passados e futuros,
naufrágios e outros apuros,
descobertas e alegrias.
Alegrias descobertas
ou mesmo achadas, lá vão
a todas as naus alertas
de vaia mastreação,
mastros que apoiam caminhos
a países de outros vinhos.
Está é a ébria embarcação.
Barão ébrio, mas barão,
de manchas condecorado;
entre o mar, o céu e o chão
fala sem ser escutado
a peixes, homens e aves,
bocas e bicos, com chaves,
e ele sem chaves na mão.
2.
A ilha ninguém achou
porque todos o sabíamos.
Mesmo nos olhos havia
uma clara geografia.
Mesmo nesse fim de mar
qualquer ilha se encontrava,
mesmo sem mar e sem fim,
mesmo sem terra e sem mim.
Mesmo sem naus e sem rumos,
mesmo sem vagas e areias,
há sempre um copo de mar
para um homem navegar.
Nem achada e nem não vista
nem descrita nem viagem,
há aventuras de partidas
porém nunca acontecidas.
Chegados nunca chegamos
eu e a ilha movediça.
Móvel terra, céu incerto,
mundo jamais descoberto.
Indícios de canibais,
sinais de céu e sargaços,
aqui um mundo escondido
geme num búzio perdido.
Rosa-de-ventos na testa,
maré rasa, aljofre, pérolas,
domingos de pascoelas.
E esse veleiro sem velas!
Afinal: ilha de praias.
Quereis outros achamentos
além dessas ventanias
tão tristes, tão alegrias?
(Trecho de Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima).

segunda-feira, 12 de março de 2012

RECEITA DE ANO NOVO - Carlos Drummond de Andrade

RECEITA DE ANO NOVO

Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo 
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, 
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido 
(mal vivido talvez ou sem sentido) 
para você ganhar um ano 
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, 
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; 
novo 
até no coração das coisas menos percebidas 
(a começar pelo seu interior) 
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, 
mas com ele se come, se passeia, 
se ama, se compreende, se trabalha, 
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, 
não precisa expedir nem receber mensagens 
(planta recebe mensagens? 
passa telegramas?) 

Não precisa 
fazer lista de boas intenções 
para arquivá-las na gaveta. 
Não precisa chorar arrependido 
pelas besteiras consumadas 
nem parvamente acreditar 
que por decreto de esperança 
a partir de janeiro as coisas mudem 
e seja tudo claridade, recompensa, 
justiça entre os homens e as nações, 
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, 
direitos respeitados, começando 
pelo direito augusto de viver. 

Para ganhar um Ano Novo 
que mereça este nome, 
você, meu caro, tem de merecê-lo, 
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, 
mas tente, experimente, consciente. 
É dentro de você que o Ano Novo 
cochila e espera desde sempre.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Balada de Amor ao Vento - Paulina Chiziane

Sarnau e Mwando protagonizam esta estória de amor. Da juventude à idade madura, com eles percorremos os dias, os meses, os anos, os encontros e os desencontros, a dolorosa separação, o desespero, o sofrimento e a alegria, as lágrimas e os sorrisos. Atravessamos cidades e aldeias, convivemos com a tradição, aprendemos os costumes e os hábitos de um povo. Sarnau vai crescendo e amadurecendo sob o nosso olhar. Impossível não admirar a coragem, a determinação, o orgulho e a humildade, a firmeza e o carácter desta mulher. E a sua fidelidade, mesmo nas circunstâncias mais adversas, ao amor. Ao seu primeiro e único amor. Mas haverá um reencontro? Serão Sarnau e Mwando capazes de apagar um tão longo e trágico passado? Existirá ainda para eles um futuro a partilhar? «Tu foste para mim vida, angústia, pesadelo. Cantei para ti baladas de amor ao vento. Eras para mim o mar e eu o teu sal. No abismo, não encontrei a tua mão.» Sarnau, tu que assim falaste a Mwando, chegarás a encontrar um pouco de paz? Voltarás a conseguir esboçar no rosto o teu lindo sorriso, há muito perdido no tempo? Abrirás enfim os braços para neles abrigares o amor? Ouvirás a melodia que o vento espalha no universo?

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O Homem Duplicado - José Saramago


Tertuliano Máximo Afonso, professor de História no ensino secundário, «vive só e aborrece-se», «esteve casado e não se lembra do que o levou ao matrimônio, divorciou-se e agora não quer nem lembrar-se dos motivos por que se separou», à cadeira de História «vê-a ele desde há muito tempo como uma fadiga sem sentido e um começo sem fim». Uma noite, em casa, ao rever um filme na televisão, «levantou-se da cadeira, ajoelhou-se diante do televisor, a cara tão perto do ecrã quanto lhe permitia a visão, Sou eu, disse, e outra vez sentiu que se lhe eriçavam os pelos do corpo».
Depois desta inesperada descoberta, de um homem exatamente igual a si, Tertuliano Máximo Afonso, o que vive só e se aborrece, parte à descoberta desse outro homem.